Quando a democracia conta os seus mortos
Por Alexandre Honrado
Quando a democracia conta os seus mortos é invariavelmente porque cedeu à força bruta das ditaduras, que são, como se sabe, o seu oposto, o seu maior inimigo, o desdém que fica à espreita da oportunidade de as dissolver e substituir. Passa-se o mesmo com os ditadores depostos e com aqueles que foram os seus escolhidos, a sua elite, ou simplesmente os seus benificiários: aguardam na sombra dos seus recalques o tempo de saírem da toca procurando dominar os outros e repor distopias antigas, venham elas em que formato vierem (e tantos são, nas ditaduras, nos regimes mais ou menos totalitários, mais ou menos musculados, que os há de todos os quadrantes políticos, mais ou menos intensos e mais ou menos intolerantes).
Mesmo quando são o resultado de conflitos abertos, de revoluções por exemplo, os regimes democráticos definem-se pela capacidade de apaziguamento, pela tolerância, pela liberdade (que há de ser da expressão à da crença, passando pela de escolha e pela de indigitação, pela representatividade, voto em ti porque confio…).
Quando nas democracias alguns, poucos e ambiciosos, tomam conta do poder, ignorando o povo, atiram a Democracia para o corredor da morte dos seus princípios mais ilustrados e elevados.
Depois de séculos de teocêntrica estagnação, as democracias antropocêntricas apareceram no puzzle da política mundial e fizeram acreditar ser possível a paz no mundo, a coabitação humana, o respeito pela diferença, a aceitação do outro e pelo outro – e o interculturalismo, atirando de vez para a sarjeta das más memórias os conflitos de todo o género que opõem os seres humanos impedindo-lhes humanidade e humanismo global.
No recuo da cultura democrática, da aquisição da sabedoria que é o saber da cidadania e do desenvolvimento – que só é possível no aprofundado entendimento do que é a complexa relação do indivíduo com o mundo e com a preparação consciente para a aceitação dos valores espirituais, estéticos, morais e cívicos que o tornam capaz de viver em coletivo e de forma equilibrada na coabitação dos universos culturais tão distintos que nos tocam e formam – nesse recuo, encontram-se os medos e as manipulações sem escrúpulos, mas capazes de nos levarem à miséria intelectual e social.
Escrevo isto a ver os mortos no Capitólio e aquele desfile de Entrudo – tantos mascarados, alguns a querem passar por heróis! -, derrotando valores e mostrando as metástases do cancro que mina os Estados Unidos, um dos bastiões da Democracia, que se tornou referência no dia 4 de julho de 1776, mas sobretudo desde 1865, quando foi abolida a escravidão pela Décima Terceira Emenda da Constituição norte-americana. Uma cultura que Trump não conhece, pois está mais no roteiro da guerra (os Estados Unidos dominam o comércio mundial de armas e reforçaram esse domínio nos últimos anos) do que na agitada e violenta cultura da paz.
Ninguém devolve a vida àqueles que morrem em episódios como aquele que vimos, em direto nalgumas televisões, no Capitólio. Mas só a forma como se morre por uma causa distingue o herói, o imortal, o mártir, do imbecil que acreditou no twitter que o mobilizou para uma causa perdida.
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